Atualizado em 13 de julho de 2022 |
Publicado originalmente em 13 de julho de 2022
O início de carreira é sempre desafiador; desde o momento de escolher uma profissão, buscar cursos e qualificações, até finalmente ingressar no mercado de trabalho, nos deparamos com uma mistura de sentimentos, como entusiasmo, determinação, otimismo, dúvidas, medos, entre muitos outros. Para pessoas que vivem com a atrofia muscular espinhal (AME), não é muito diferente.
No entanto, elas encontram um cenário ainda mais complexo e bastante comum entre as pessoas com deficiência (PCDs). Um levantamento de 2021 da Secretaria do Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPcD)¹ revelou que, em muitas das oportunidades disponíveis, os profissionais têm sua condição de PCDs levada em conta, em vez de suas habilidades e do conhecimento que possuem.
Por se tratar de uma doença progressiva, que atinge os neurônios motores, a AME causa fraqueza muscular e leva à perda gradativa dos movimentos2,3, afetando diretamente a qualidade de vida de quem vive com ela. Por isso, a inclusão de pessoas que vivem com a doença no mercado de trabalho faz toda a diferença, já que exercer a profissão pode representar uma participação mais ativa na sociedade, além de possibilitar mais autonomia e oportunidades de socialização⁴.
A estabilização dos sintomas da AME possibilita, por exemplo, a habilidade plena de digitar, tendo um grande e positivo impacto na vida profissional e abrindo um leque de oportunidades. Ou ainda a capacidade de caminhar por alguns metros a mais, o que pode significar um avanço na independência e na vida social dessas pessoas, permitindo ir a uma padaria ou não depender de ninguém para se locomover dentro de casa ou chegar até o escritório. Outro fator muito importante é que, apesar das limitações físicas, a AME não afeta a capacidade de aprendizagem e a inteligência dos pacientes, ou seja, a função cognitiva é preservada⁵. Sendo assim, é fundamental discutir a inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho.
A técnica administrativa Ingrid Gutierre (@ingrid.fgutierre) e a estudante de medicina Monique Adams (@moniqueeadams) contaram um pouquinho sobre seus desafios e suas conquistas, além de dar algumas dicas para quem está no começo dessa jornada.
A decisão e os desafios de seguir uma carreira profissional
Desde a infância, elas tiveram muitos incentivos para ingressar no ensino superior, seja por parte da escola ou da família: “meus pais sempre me incentivaram em relação a isso e nunca colocaram empecilhos por causa da deficiência, então foi uma decisão que aconteceu de forma natural e espontânea”, contou Monique, que já se encaminha para a conclusão do curso de medicina.
Já Ingrid relembrou que, após a graduação, continuou a se interessar pela área de pesquisa, mas a vida acabou levando-a por outro caminho: “me encontrei trabalhando na área administrativa, o que me fez buscar uma pós-graduação em Gestão Empresarial, para abrir os horizontes”. Ela, que é bacharel em Comunicação Social com ênfase em Publicidade e Propaganda, relatou sua surpresa na busca pelos primeiros empregos: “pensava que seria fácil ingressar no mercado de trabalho, já que sempre via vagas para pessoas com deficiência, mas foi puro engano”, comentou.
“As primeiras entrevistas de emprego me fizeram ver que o mercado busca os profissionais com deficiência somente para cumprir com a legislação trabalhista e não pagar multas, inclusive selecionando a deficiência, de acordo com o que melhor atenda suas necessidades”, afirmou Ingrid. A publicitária revelou ainda que algumas empresas nem divulgavam a função disponível: só ofertavam a vaga de emprego para estar em conformidade com a lei, mesmo que a pessoa contratada não tivesse como contribuir com a empresa.
Após conseguir um emprego e vencer o desafio da colocação no mercado de trabalho, vieram as questões da acessibilidade na prática. Felizmente, Ingrid pôde contar com a parceria da empresa para a qual havia sido contratada, onde trabalha até hoje como agente administrativa. “O gerente pediu que eu sinalizasse todas as melhorias possíveis para melhorar a acessibilidade”, contou. A profissional, que atua em uma empresa do setor educacional, disse ainda que as adaptações implementadas atraíram mais colaboradores, além de estudantes com deficiência para os cursos da instituição.
“Cada pequena conquista na questão da acessibilidade sempre me orgulhou, mas a postura das pessoas comigo é meu maior orgulho nesse sentido”, afirma Ingrid Gutierre, técnica administrativa.
Monique também encontrou diversos desafios durante a sua formação em Medicina: ela relatou que teve de lidar com o capacitismo (preconceito direcionado às pessoas com deficiência) de pessoas de dentro da universidade, conhecidos e até mesmo de alguns parentes. “Isso foi e ainda é um desafio emocional intenso, mas que supero a cada dia quando revejo um paciente que atendi e recebo um agradecimento por ter feito um diagnóstico que mudou sua vida”.
“Fazer Medicina, para mim, é um desafio que às vezes me testa ao limite (físico, emocional e cognitivo), mas nesses momentos também vejo o quanto gosto do que faço, me surpreendo comigo mesma por dar conta e tenho a certeza de que estou no caminho certo”.
Monique Adams, estudante de Medicina.
"Isso faz tudo valer a pena e inunda meu coração com satisfação, alegria e orgulho de mim mesma. Ajudar os outros utilizando o raciocínio é o que me preenche e me faz feliz", afirma Monique Adams, estudante de Medicina.
A vida profissional com AME
A futura médica reforça a importância de uma graduação, tanto para as pessoas com AME e demais PCDs, como para qualquer indivíduo sem nenhum tipo de deficiência – mesmo que, em muitas ocasiões, isso não seja mandatório para atingir metas que um diploma poderá trazer. “Obviamente, às vezes teremos que utilizar a criatividade para superar algumas barreiras, mas quando você sabe o que quer, isso se torna algo bem pequeno. Nós, pessoas com AME, temos um excelente intelecto e podemos contribuir muito para a sociedade com a nossa profissão e estudo, se assim for o nosso desejo, então não devemos nos limitar”, completou.
“A escolha de uma profissão é algo que traz uma sobrecarga muito grande e muitas vezes temos implantado em nós uma ideia romantizada de que existe uma profissão que é a nossa "alma gêmea", que com ela seremos 100% felizes”, comentou a estudante. Segundo ela, o segredo é pensar de forma racional em como gostaria de estar trabalhando, deixando em segundo plano as afinidades com as matérias da escola.
Monique também ressalta a necessidade de saber que não existe uma data certa para escolher uma profissão: “se daqui a dez anos eu ver que a medicina me deixou infeliz, qual o problema em trocar de profissão?”, refletiu. “Não existe uma data limite para se decidir ou até mesmo para trocar de rumo. A vida é muito curta para viver o sonho dos outros ou fazendo o que não gosta”, finalizou.
Ingrid relembra: o primeiro passo é não desistir. “O ingresso no mercado de trabalho não é fácil para ninguém, e com as limitações que a AME costuma trazer, o desafio é muito maior”, comentou. “Costumo dizer que o primeiro olhar é para aquilo que nos faz diferentes, mas depende de nós nos mostrarmos seres humanos afetivos e bons profissionais”.
"No início, os clientes olhavam para mim e quando notavam a cadeira de rodas acabavam escolhendo algum dos outros atendentes. Com o tempo, fui demonstrando minha capacidade profissional e esse quadro mudou".
Contou Ingrid.
Animada com o futuro, Monique deve se formar em dois anos e meio: “estou na época de experimentar várias especialidades médicas, descobrir o que gosto e escolher posteriormente sem pressão”, contou a estudante, que já tem em mente cinco áreas diferentes para se capacitar: neurologia, psiquiatria, genética médica, oncologia ou radiologia. “Vou dar um passo de cada vez, aproveitando cada momento dessa jornada para aprender e dar o meu melhor para construir o meu futuro”, afirmou.
O conselho de Ingrid é buscar maneiras de se inserir na esfera social: “construir uma sociedade mais inclusiva e acessível depende de nós, então viva e faça a diferença”.
Em dúvida sobre algum termo desta matéria? Confira o glossário.
Referências bibliográficas:
1. Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Pesquisa Pessoa com Deficiência e Emprego. Disponível em: https://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/wp-content/uploads/2021/04/Relatorio-de-Pesquisa-Pessoa-com-Deficiencia-e-Emprego.pdf. Último acesso em junho de 2022.
2. Prior TW, Leach ME, Finanger E. Spinal Muscular Atrophy. 2000 Feb 24 [updated 2020 Dec 3]. In: Adam MP, Ardinger HH, Pagon RA, Wallace SE, Bean LJH, Mirzaa G, Amemiya A, editors. GeneReviews® [Internet]. Seattle (WA): University of Washington, Seattle; 1993–2021.
3. Wang CH, Finkel RS, Bertini ES, Schroth M, Simonds A, Wong B, et al. Consensus statement for standard of care in spinal muscular atrophy. J Child Neurol. 2007;22(8):1027–49. Fischer MJ, Asselman FL, Kruitwagen-van Reenen ET, Verhoef M, Wadman RI, Visser-Meily JMA, et al. Psychological well-being in adults with spinal muscular atrophy: the contribution of participation and psychological needs. Disabil Rehabil. 2020 Aug;42(16):2262-2270
4. von Gontard A, Zerres K, Backes M, Laufersweiler-Plass C, Wendland C, Melchers P, et al. Intelligence and cognitive function in children and adolescents with spinal muscular atrophy. Neuromuscul Disord. 2002;12(2):130–6.
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