Viver além da AME

Atualizado em 01 de agosto de 2022 |
Publicado originalmente em 01 de agosto de 2022

Nova série literária traz depoimentos de mulheres com AME e mostra a diversidade entre cada caso

Cada pessoa com atrofia muscular espinhal é um universo de características e vivências únicas, então nada melhor que dar protagonismo a elas e mostrar o quanto a comunidade é diversa por meio de oportunidades para contar suas histórias, não é mesmo? Este é o objetivo da campanha ‘Se o simples complicar, investigue’, que tem foco nos jovens e adultos com AME.

Apesar de se manifestar majoritariamente em bebês e crianças, a AME pode também acometer jovens e adultos. Você sabia que eles correspondam a 35% da população global de pessoas com AME?1 Os sinais e sintomas da AME de início tardio, como a literatura científica coloca, podem ser identificados justamente nas ações do dia a dia, a partir de dificuldades motoras progressivas e, muitas vezes, até sutis2-3, como levantar-se da cama, escrever, andar e até fazer os movimentos para escovar os dentes.

Na primeira fase da campanha, convidamos seis cartunistas, sendo um de cada região do Brasil, para criar uma coletânea de tirinhas que representassem da forma mais apropriada possível as pessoas com AME que vivem no Brasil. Nesta nova fase, chamamos o jornalista Chico Felitti (@chicofelitti) para produzir uma série de contos com as histórias de três mulheres que vivem com a doença.
Conheça as nossas protagonistas:

 

Ana Clara – muitas em uma só

Ana Clara Moniz (@_anaclarabm) sempre gostou muito de ouvir e contar histórias, conhecer as pessoas e contar a sua própria história. Com 22 anos, tem tantas facetas que não consegue escolher apenas uma para se definir: é jornalista, produtora de conteúdo, empresária e muito mais. De maneira sincera e descontraída, a jovem, que foi diagnosticada com AME tipo 2 com um ano de idade, contou a sua história, falou sobre amor e planos para o futuro.

 

Ingrid – fazer, acontecer e ser feliz

Ser uma pessoa com AME raramente impediu Ingrid Gutierre de fazer o que queria: de bloquinhos carnavalescos a passeios em alto mar, ela encontrou maneiras de se fazer presente e realizar seus sonhos. Publicitária por formação, também é funcionária de uma instituição de ensino, coordenadora de uma ONG de apoio a mulheres, esposa, mãe de dois filhos, artesã e empreendedora. Ingrid tem 39 anos e foi diagnosticada com AME tipo 2 com um ano e meio de vida.

 

Madalena – o poder da sede por conhecimento

Diferente das outras personagens, a AME apareceu mais tarde na vida da Madalena Filgueira: os primeiros sinais apareceram apenas aos seis anos de idade. Já adulta e formada em Direito, decidiu aprender mais sobre a AME, conheceu pacientes, criou uma comunidade de pessoas que têm ou convivem com quem tem AME, até virar ativista da causa. Com 40 anos, também é mãe, esposa, servidora concursada e empreendedora. Ela tem AME tipo 3.

 

Quer conhecer melhor as nossas personagens? Leia a seguir:

Ana às claras

Aos 22 anos, Ana Clara Moniz fala com centenas de milhares de pessoas sobre amor, sobre AME e sobre o que mais ela quiser.

“Quando eu entrei na faculdade eu queria… Ou, assim, eu achava que eu queria apresentar o Jornal Nacional. Que nem a Fátima Bernardes, sabe?”. Quando Ana Clara Moniz fala sobre a sua escolha profissional, ela parece uma veterana, por mais que tenha 22 anos de idade. “Eu não tive aquela dúvida de o que queria fazer. Eu sempre soube que eu queria fazer jornalismo.” Em 2018, o sonho da jovem se tornou realidade. Ela entrou na faculdade. Só que a realidade não era exatamente como esperava.

Para começar, o curso consistia muito mais em ler textos do que pegar um microfone e ir para as ruas. Ela teve, por exemplo, de enfrentar três semestres de teologia. Não era bem a vida de Fátima Bernardes com que sonhava. Até que chegou a chance de ela ir a campo. “E aí eu fui fazer a minha primeira reportagem. Eu tinha que cobrir um evento que estava acontecendo na faculdade. E eu entrei em pânico porque tinha que entrevistar as pessoas. E é uma coisa meio esquisita. Você tá na rua e tem que entrevistar as pessoas é uma coisa meio invasiva.” Não tinha nem chegado aos 20 anos, mas já passava por sua primeira crise profissional. Pensou em trocar de graduação. “Eu só não troquei por psicologia porque o curso era em outro campus, que ficava a 40 minutos da minha casa. Eu ia ter que mudar pra muito longe”, ela ri.

Então, decidiu ficar onde já estava. Até porque tinha se mudado do Rio para Campinas, no interior de São Paulo, só para estudar. “Meus pais iam ficar muito bravos comigo. Continuei na faculdade, mas comecei a fazer também uns cursos de roteiro de cinema.” E começou a descobrir o lado mais descontraído da vida universitária. “Eu ia muito a rolê de faculdade, antes da pandemia. Muito. E aí, no meio do rolê, chegava uma galera tipo ‘Ai, queria te parabenizar por estar aqui, por estar curtindo’. Aí eu falava ‘Por quê?’, aí a pessoa fica meio tipo ‘Ah não, por…’. A pessoa vai meio que desmontando sabe? ‘Ah não porque você tá aqui’ e eu falava ‘Ué, mas você também tá’.”

 

Ah, sim, porque calha de Ana Clara viver com trofia muscular espinhal (AME) e de se locomover em uma cadeira de rodas motorizada que batizou de Janaina. Porque, como ela mesma define, isso é só mais uma informação na sua vida. Uma de muitas. “Porque é algo que, muitas vezes, estraga o rolê. É algo muito desconfortável. Sei lá é uma coisa tipo, ‘Pô, hoje eu só queria estar curtindo o rolê e sendo uma jovem irresponsável. Sabe?”.

Tirando esses incidentes, ela tinha a vida de uma pós-adolescente. Estágio, faculdade e uma balança de frustrações e sonhos que parecia nunca ficar equilibrada. Ah, e tinha mais um fator típico da sua idade, um canal de YouTube onde compartilhava vídeos sobre seu dia a dia. “Era só pra falar da minha vida. Reclamar, comentar série, falar do que eu quisesse.” Mas daí, em um dos primeiros meses de pandemia, Ana Clara viralizou.

Em junho de 2020, ela postou um vídeo. Era mais um em meio a dezenas que já tinha publicado na internet. Mas seu texto pessoal pegou na veia de muitas pessoas. Na tela de abertura, vinha o título: “As pessoas com deficiência sempre estiveram de quarentena.” Nos três minutos em que está diante da câmera, ela diz coisas como: "Tem muita gente reclamando: 'Ai, que saudade de ir à loja comprar roupa' e eu fiquei lembrando de como, na cidade onde eu morava, eu não conseguia passar pela porta das lojas". O vídeo chegou a centenas de milhares de pessoas. Em um corte seco, Ana Clara viu sua voz ganhar um megafone chamado viralização. Em uma semana, ela saltou de dez mil seguidores no Instagram para vinte mil seguidores.

“Eu senti bastante medo. No começo, quando esse vídeo viralizou, eu fiquei bem, tipo, primeiro assustada, porque quando algo viraliza é meio que… Muito.” Muito pedido de entrevista, para jornais e sites de todo o Brasil. Muita mensagem para responder. Muita opinião, positiva e negativa, saindo do teclado de desconhecidos. E, de repente, muita oportunidade de dar uma guinada na carreira. “Até aí, era um hobby. Só um hobby. Eu gostava de fazer, eu gostava de falar, sempre gostei de câmera e fazia. Mas só por gostar. Dava zero dinheiro.” Daí, de um dia para o outro, surgiu a possibilidade de ganhar dinheiro. Fazer publicidade para marcas de refrigerante. Dar palestras virtuais para empresas. Tudo isso enquanto ainda era uma aluna de terceiro ano da faculdade, com 20 anos.

“E aí, quando eu comecei a receber propostas eu fiquei meio: ‘Não, calma, acho que isso é um trabalho!’.” Mas, para levar a nova carreira à frente, ela precisava criar uma empresa. Foi daí que nasceu a Ana Clara Coorporation, um conglomerado de uma pessoa só. E ela virou um megazord do departamento criativo com o financeiro, o RH e a diretoria. Tudo em uma mulher só. “Eu fazia tudo. Reunião, proposta, editava vídeo, filmava. Eu ficava empolgada, e aí eu ficava com medo, e aí eu ficava empolgada e aí eu ficava com medo. Era uma montanha-russa.”

Aos 20 anos, Ana tinha uma jornada quádrupla: ainda estava na faculdade, tinha o estágio no instituto social de uma empresa, a vida virtual e a pandemia por cima disso tudo. “Porque na pandemia a gente surtava um pouco. Era um trabalho em si”, ela ri. Na época, ficava na empresa das oito da manhã às duas da tarde. Chegava em casa e se dividia entre os vídeos e as aulas. “Meio que surtei e surtei muito. Mas ao mesmo tempo eu não podia reclamar porque eu estava trabalhando, estava ganhando dinheiro e tudo mais. E a faculdade foi indo né? Aquilo né? EAD”, ela diz. Nesse ano, ela chegou a trabalhar ao mesmo tempo com dois computadores. Uma mão ficava em cada carreira. “Eu tava aqui, de um lado, em reunião com meu chefe e, ao mesmo tempo, montando apresentação de palestra. Foi meio caótico.” Mas sobreviveu. “Em momento algum a pandemia foi boa, mas o fato de eu estar em casa nesse momento que as coisas explodiram foi bom pra mim, por eu conseguir conciliar os dois. Porque, se eu tivesse indo presencialmente, não teria rolado. Foi horrível, mas foi ótimo”, ela diz, e gargalha.

A vida virtual de Ana Clara floriu. Ela passou a postar mais e mais vídeos. Alguns falavam sobre acessibilidade, como dicas de elogios a não fazer a uma pessoa com deficiência, ou um tutorial de como tornar seu Instagram verdadeiramente acessível. Mas ela queria falar sobre mais. Mais do que AME, ela queria falar sobre amor.

Em junho de 2021, ela deu um passo além. Gravou um vídeo em que falava de amar, não de AME. Ana Clara filmou quando contou que tinha uma namorada ao pai, com quem morava, e à mãe, em uma chamada de vídeo. Nos primeiros segundos, o pai pergunta “É seu primeiro namorado?”, pausa por meio segundo, e termina: “ou namorada?”. Ana concorda com a cabeça. O pai responde: “Que legal!”. Depois, ele a abraça, diz que está feliz por ela e pergunta: “Cê tava nervosa?”. Ela responde, entre soluços de choro: “Eu tava com medo”. Passado um ano dessa gravação, ela coloca essa palavra no plural: estava com medos. “Foram dois níveis de medo.” O primeiro medo era mais privado, de contar para os pais. O segundo era um medo público.

“Então… isso existiu, sabe? E quando eu me assumi na internet eu tinha muito esse receio. Porque já aconteceu também de falarem que eu ficava com meninas porque meninos não iam querer ficar comigo. Sabe? Uma coisa desse tipo ‘ah, porque eu vou ter mais opção’. Eu tinha medo disso, eu tinha medo de fazer parte de mais uma minoria.” Mas foi com medo mesmo. Ana Clara se filmou contando aos pais que tinha uma namorada. E o vídeo viralizou. Mais de meio milhão de pessoas viram aquele momento, íntimo e comovente. E Ana Clara deu mais um salto. Foi de 25 mil seguidores para mais de 45 mil em um dia. “Eu me senti muito acolhida. O que eu não esperava. Eu esperava que eu fosse ter muito mais comentários ruins e coisas negativas sobre, do que se realmente ser acolhida. E quando eu postei, até hoje não consegui ler tudo o que falaram, o que me mandaram, mas eu comecei a ver e a ler e era muita coisa do tipo ‘Seja bem-vinda do lado de fora do armário’ ou coisas que eu me senti de fato acolhida. Eu me senti muito bem.”

 

Esse bem-estar vinha contrariar uma experiência desamorosa e ruim que ela tinha tido na infância. “Quando eu tinha uns 13 anos, gostava de um menino. E ele simplesmente me disse: ‘Não, não ficaria com você. Meus amigos vão me zoar, meus amigos vão ter vergonha de mim, vão me zoar e eu não quero ser zoado’”. Hoje, Ana vê quantas camadas tinham aquelas frases. “Então além de ser uma decepção amorosa também teve capacitismo ali. E foi algo que, assim, me marcou muito e algo que até hoje eu carrego traumas por conta disso. Eu fui descobrindo que capacitismo ia chegar junto com homofobia, com bifobia e enfim. E que muitas vezes a gente nem sabe o que que é. A gente só sabe que a pessoa tá sendo maliciosa, mas você não sabe exatamente por quê.

E, vivendo de internet, ela está graduada em como lidar com o ódio gratuito dos outros. Tanto que faz piada. Quando vê um comentário virulento, pergunta para si mesma: “Tá me desrespeitando por que eu sou mulher? Ou é por conta da minha deficiência? É porque eu sou bi? Não to entendendo”, e gargalha.

Mas a vida fora das redes tinha lombadas. Ana e a namorada viviam algumas questões dentro do relacionamento, que eventualmente terminou. E Ana foi cobrada publicamente sobre a situação. Foi um momento difícil. “Pelo visto, eu sempre tive ansiedade. Mas foi algo que nunca me falaram, nunca foi diagnosticado, nunca tratei. Aí, no ano passado, eu comecei a ter muitas crises. Muitas crises. E minha ex-namorada tem ansiedade também. E daí foi por causa disso que eu fui atrás. Demorou um pouco, mas eu fui. E aí no começo do ano agora aconteceu tudo isso de uma vez só, o caos. Terminei a faculdade, terminei o estágio, estava desempregada, sem renda fixa, sem dinheiro, minha namorada terminou comigo.” Foi o momento em que ela virou as costas para a correria. E parou. Ana Clara ficou offline. ”Eu passei tipo um mês na cama. Não conseguia levantar da cama. Não conseguia dormir. Não dormia nem acordava.” Passou três meses na casa da mãe. Começou um tratamento com psiquiatra.

Mas rolou. No fim de 2021, Ana Clara se formou e deixou o estágio. O que nos leva ao momento atual. Dois anos depois da primeira viralização, a Ana Clara Coorporation vai de vento em popa. Ana se mudou para São Paulo no meio de 2022. Dias antes de me encontrar para um café num museu em São Paulo, ela tinha viralizado pela enésima vez. Fez uma postagem no Twitter em que dizia que seu maior pesadelo havia se tornado realidade: sair em um site de “histórias inspiradoras.” “Era brincadeira, porque apareci em uma reportagem legal, sobre uma linha de roupa íntima inclusiva. Mas eu sempre fiz essa piada, porque nesses sites tem muita matéria do tipo ‘cadeirante sendo feliz’. Daí eu tinha medo de colocarem minha história ao lado de uma frase do tipo ‘qual a sua desculpa pra não fazer tal coisa’, sabe? Eu falo que são oito ou oitenta. Ou é coitadinho. Ah, coitadinha dela, não sei o que e tal. Ou é ‘meu Deus, puxa vida! Essa vencedora’.” Ana gosta de deixar claro que não é oito nem oitenta. Às vezes é oito, outras é dezoito, e tem momentos em que está oitocentos. Como todo ser humano, ela não é uma coisa só.

É até por isso que, no meio de 2022, Ana Clara não sabe exatamente o que é. “Não sei se me chamo de jornalista, de produtora de conteúdo, de empresária…” Só prefere deixar de fora do baralho o termo “influenciadora”, e explica o porquê. “É uma coisa tipo: eu não sei se eu influencio as pessoas, sabe? Tipo, eu não posso falar por você que eu influencio você ou não.”

Talvez influencie mais do que pensa. Ela mesma conta das dezenas de mensagens que recebeu de pessoas que dizem se ver nas suas histórias. Não só pessoas que vivem com AME, que fique claro. Porque a história dela passa por viver com AME, mas não se resume a isso. “Eu não tenho problema nenhum em falar sobre AME, sobre capacitismo. Eu gosto de ser essa pessoa, de falar sobre isso. Mas eu também gosto de falar sobre um monte de coisa, sabe? Tem hora que eu não estou afim. Eu não sou a única pessoa que posso falar sobre isso na internet, sabe?”.

Ela segue falando do que quiser na internet. Produz vídeos de maquiagem, analisa o último filme da Disney e mostra sua primeira aula de surf. “As pessoas acham que uma pessoa com deficiência deve falar o tempo todo sobre seu corpo. Mas meu corpo não é público, sabe? Eu não preciso ficar falando sobre. Dando satisfação sobre o meu corpo pras pessoas o tempo todo. Mas eu não ligo de falar, mas só quando eu quiser falar.”

Em dois anos, a Ana Clara Coorporation foi de uma empresa de uma mulher só para uma equipe capilarizada. Ana hoje trabalha com cinco pessoas, todas ex-colegas de universidade. Tem também uma agência para cuidar dos seus interesses comerciais. Está planejando uma expansão: quer abrir cada vez mais seu leque de temas. Pensa em produzir um documentário em breve. “Apesar de eu não querer mais ser a Fátima Bernardes do Jornal Nacional, isso não mudou. Que é: eu gosto muito de ouvir e contar histórias, conhecer as pessoas e contar história e contar a minha própria história.” Sem nunca deixar a AME para trás. Quer somar, e não subtrair. Até porque ela sempre falou sobre AME.

 

“Nunca foi uma questão pra mim. Eu fui diagnosticada com um ano de idade. E, quando eu tinha um ano, o médico disse que eu ia viver só até os dois anos de idade.” A previsão não se concretizou. Ana cresceu com AME. “Eu lembro muito bem de eu, pequenininha, num congresso de AME, sabe? Um encontro para os médicos explicarem pras famílias o que era AME e tudo mais. Então, tipo nunca foi uma coisa escondida de mim. Nunca foi tipo aquilo ‘ah, não falamos sobre isso perto da Ana Clara’.” Talvez seja essa a transparência que ela levou para as redes sociais, em que fala do assunto sem reservas. Mas, desde esse prognóstico, Ana vive em mistério. “É OK, mas ao mesmo tempo é muito assustador. Porque eu não tive uma expectativa de vida. E, por isso, quando eu faço aniversário é quando todo mundo comemora horrores, porque é tipo mais um ano de vida, sabe?”.

Mas algo mudou. Nas primeiras semanas de 2022, Ana se deu conta de que a evolução do conhecimento sobre a AME nos últimos anos havia trazido novas perspectivas. “É uma doença que não para, né, ela já promete no nome, é progressiva. Só que daí ela parou. E eu parei junto. Porque é algo que eu nunca nunca vivi, sabe?.” De repente, Ana Clara se deu conta de uma coisa. “Eu me vi pensando que… Bom, que eu nunca fiz muitos planos pro futuro. Meio porque eu nunca sabia se eu ia estar viva. Óbvio que ninguém sabe se vai estar vivo, a gente pode ser atropelado na rua daqui a dez minutos. Mas eu nunca fiz muitos planos para o futuro, sabe? E isso foi meio inconsciente, de achar que eu não ia viver.” Até que, dia desses, rodando pelas ruas de São Paulo, ela foi atingida por um pensamento que parecia uma bigorna invisível. “Eu parei. E me veio a pergunta: ‘E agora? Como assim? Que que eu faço? Eu posso fazer planos ou será que eu não posso? Será que eu sou uma pessoa normal agora?”. São muitas perguntas. E Ana Clara não tem resposta para a maioria delas. Talvez nunca tenha para muitas. Mas, como boa jornalista, ela sabe que às vezes as perguntas são mais importantes do que as respostas. “E eu não sei. Só sei que eu nunca tinha pensado que eu não fazia planos pro futuro. Até eu me pegar fazendo planos para o futuro.

 

Ingrid está afim de se jogar

Ingrid Fasolin Gutierre tem 39 anos, uma família e uma vida repleta de aventuras que aconteceram naturalmente.

O evento mais aguardado na infância de Ingrid Fasolin Gutierre era uma excursão de escola em um sítio. Na programação da viagem, havia uma brincadeira em que a turma se jogava no chão e saía rolando morro abaixo. Vendo a criançada se jogar no barranco, a mãe de Ingrid, que a acompanhou no acampamento, perguntou se a filha queria ir também. “Minha mãe estava comigo o tempo inteiro. Ela é parceirona. E aí: ‘cê quer também? Vamos lá!’”. Dito e feito. A mãe pegou a filha da cadeira de rodas, a colocou no chão e a empurrou ladeira abaixo. “Vamos rolar o barranco também. Vamos tomar chuva também. Ela saía comigo na chuva!”. A atitude destemida da mãe dela não aparecia só em momentos isolados. Era, na verdade, uma postura. Uma postura que era de família.

Começou quando ela ouviu o diagnóstico de que Ingrid, com um ano e meio de vida, tinha atrofia muscular espinhal (AME). A mãe já vinha percebendo que algo estava mudando no processo de desenvolvimento da filha, que até então tinha se mostrado a criança mais precoce da família. “Eu tenho uma prima que eu e ela temos só dezenove dias de diferença de idade. E minha mãe conta que eu sempre fiz tudo primeiro. Sentei, fiquei em pé, comecei a dar uns passinhos. E aí, ela viu que eu parei e comecei a regredir.” Foi aí que o périplo de consultas e exames também começou. Inicialmente, os médicos não levaram o caso a sério. Nem a mãe. “Eu era bem pequena e os médicos falavam ‘Ah, é pressa de mãe’, ‘Cada criança tem seu tempo’, ‘Calma, tudo tem sua hora tal’. Mas não adianta, a mãe sabe, né?”. E ela estava certa.

O diagnóstico veio pouco tempo depois. “Ela tinha vinte e três anos, acho que nem isso. Com dois filhos no colo. Eu, com um ano e meio, meu irmão um bebezico, recém-nascido. E os médicos são super delicados, né?!”. Ela ironiza ao lembrar o modo que o médico deu a notícia, que veio junto com uma expectativa de vida. “Ele falou assim: ‘Então, a doença que sua filha tem é degenerativa. Ela vai morrer até no máximo uns treze anos. E esse bebê que está no seu colo provavelmente também tem porque é genético’. Pensa, né?”.

De primeira, lidar com a notícia passou longe de ser fácil. Até porque, há quase quatro décadas, não se sabia tanto sobre AME quanto hoje. Então, o combo diagnóstico mais uma curta expectativa de vida fez a mãe perder o chão e o norte. “E aí ela ficou bem abalada, porque na época eles não conheciam muito o que que era. Nem hoje a galera sabe, né?”. Mas, daí, ela encontrou uma fonte valiosa de informação. Uma desconhecida nos Estados Unidos.

No fim dos anos 1980, uma tia de Ingrid trabalhava para uma fabricante de máquinas agrícolas. Por isso, tinha um privilégio: ter acesso à internet antes da maioria das pessoas daquela época. “Aí, ela conheceu uma moça adulta com AME. O mesmo tipo que o meu, fora do país. E foi isso que deu uma acalentada no coração da minha mãe, né?”. Com a descoberta, a mãe de Ingrid pôde vislumbrar um futuro para a filha, contrariando a previsão dos médicos.

Em uma época pré-digital, começou a trocar cartas com a mulher, que abriu um horizonte de novas informações e possibilidades. “Porque a menina falou que, tipo, viveu esperando que morreria antes e morreram os pais e todo mundo e ela estava viva e super bem! E aí minha mãe falou ‘Não, então a coisa não é bem do jeito que falam, né?’”. Em 2022, Ingrid se lembra de quando a mãe disse que o encontro virtual com a americana foi “como se colocassem um cobertor no meu coração”.

Quando percebeu que a medicina ainda não tinha todas as respostas, a família de Ingrid se adaptou por conta própria. “A minha família mudou muito o rumo da vida com esse diagnóstico. Mas mudou pro bem. Transformou o que podia ser o fim em um recomeço. Porque eles disseram ‘Tá bom. Vão ser treze anos. Então vão ser os melhores treze anos. Desliga o automático e vamos lá, vamos viver’. Entendeu?”.

É claro que nem sempre tudo foram flores. A primeira escola onde a mãe de Ingrid tentou matriculá-la não quis aceitar uma aluna com deficiência. Na segunda, deu certo. “Eu brincava de tudo, a criançada adorava empurrar minha cadeira, eu era ambulância, saía gritando”, ela ri. A confiança da família para encarar o mundo já respingava na personalidade que se formava na menina. “Para as crianças, eu era como elas, sabe? Porque, quando você se faz presente, você não é diferente”.

Ingrid cresceu aprendendo a se jogar em tudo que tem vontade, sozinha. Sozinha, sem que alguém a empurrasse. “Eu sempre falo pra todo mundo que eu acho que a inclusão também depende de quem precisa ser incluído mostrar a cara.” Ela quebrou a perna várias vezes quando era criança. “Acho que mais do que meus primos que andavam!”, ela brinca. Também jogava futebol com os primos e amigos. “Eu ganhei a cadeira motorizada e ia jogar futebol com os meninos! Não tinha muita noção assim, sabe, ‘não, isso não dá pra eu fazer’”.

O jeito corajoso de encarar o mundo continuou na vida adulta, até em situações um pouco mais… ousadas. “Mais velha, uma vez saí num bloco de rua de Carnaval e aí… Não, eu não tenho noção, mesmo. Desliguei o motor da cadeira, não dava pra controlar pra onde eu estava indo, tinha muita gente!”, ela ri, ao lembrar da vez que se deixou ser conduzida pela multidão no meio de um bloco em Sorocaba, no interior de São Paulo, cidade em que nasceu, cresceu e vive até hoje. “Não dava pra sair, já estava lá no meio, não tinha o que fazer, né?!”. Ingrid tem uma lista de experiências que se orgulha de chamar de suas. “Eu já fiz pescaria em alto mar, já viajei de navio…”. Por isso, ela sente que viveu mais do que os 39 anos registrados na carteira de identidade. “Eu falo que eu já fiz coisa que muita gente bem mais velha que eu não fez na vida ainda.”

 

Uma delas foi a experiência universitária. “E foi bem legal.” Isso porque Ingrid inaugurou a palavra acessibilidade no campus em que estudava. O prédio era um antigo seminário da cidade. Um prédio histórico. “Então não podia mexer muito na estrutura, né?!”. Mas rolou uma exceção assim que Ingrid começou a estudar lá. O campus se moldou a ela. “Eles adaptaram tudo para eu estudar. E no ano seguinte, as aulas já não seriam mais lá, então eles fizeram pra mim. E eu participei de tudo, tudo, tudo mesmo.”

Entre altos e baixos, talvez a maior frustração da vida dela tenha sido quando ela se formou e caiu no mercado de trabalho. Ou melhor, como deu de cara com a realidade do mercado de trabalho, e descobriu que um diploma poderia não funcionar como um imã de empregos. “Logo que eu saí da faculdade, eu falei ‘Ah, tô bem no pedaço agora! Porque as empresas estão cheias de vagas para PCD, vou conseguir algo fácil.’ Aí eu fui pro mercado e… não. Não era bem assim.”

Ainda na época de recém-formada, Ingrid fez uns bicos numa agência de comunicação de um amigo da faculdade, que também tinha acabado de se formar. Mas o trabalho foi breve. “Ele foi pra Itália e não voltou e eu perdi o meu emprego!”, ela brinca.

 

Depois de algumas entrevistas de emprego frustradas e ofertas ruins de trabalho, Ingrid começou a se cansar. “Aí não conseguia, não conseguia. Eu já tinha meio desencanado.” Com poucas esperanças de conseguir um lugar no mercado de trabalho formal, se voltou para o que já conhecia. “Eu sempre gostei de artesanato e minha mãe sempre me incentivou, pra eu poder fazer fisioterapia no dia a dia mesmo, na medida do possível, com o braço e tudo mais. Então eu comecei a fazer bijuteria bem cedo assim, na brincadeira. E na biju eu me encontrei”. Só percebeu que havia um potencial lucrativo ali quando as amigas começaram a se interessar pelos acessórios artesanais. Começou a vender brincos e colares e a guardar dinheiro. “Eu já conseguia me virar assim. Cheguei a emprestar dinheiro pros meus pais.”

 

Por ter uma reserva no banco, ela desacelerou. Mais uma vez, decidiu que não valia a pena se esforçar para caber em lugares onde não se sentiria bem. “Eu já tinha meio que desistido, sabe, de mercado de trabalho?”. E, como em toda boa reviravolta, foi aí que o destino dela começou a mudar de rumo. “Eu fiz um curso e aí uma amiga que eu fiz lá falou ‘Ó, abriu uma vaga aqui na minha empresa, pra PCD, vai lá’”.

Ingrid se inscreveu, mas foi para a entrevista com as expectativas baixas. “Já fui meio desacreditada né, porque já tinha visto tanta coisa.” De primeira, o gestor que estava a entrevistando falou o que ela queria ouvir: “‘Ó, pra mim a vaga não é PCD. Eu estou buscando um profissional que trabalhe comigo como qualquer um na minha equipe’. Falei ‘pronto, achei meu lugar! É aqui que eu quero ficar!’ Parecia que eu saí de lá já achando que eu já estava contratada mesmo!”, ela diz. Na semana seguinte, ela recebeu a notícia de que estava contratada para a área de atendimento.

Parte da experiência na empresa foi parecida com o que rolou na faculdade. “O meu gestor falou: ‘A gente sabe que a estrutura aqui não é muito adequada pra você, mas eu quero que você me ajude a melhorar.’” Foi o que ela fez. “E em umas coisas que eu nem imaginava. Por exemplo, eu não tenho muita força nas mãos. E aí, como eu entrei no atendimento, precisava grampear os contratos das matrículas. Aí eu falei ‘meu, deve existir alguma coisa’. A gente foi pesquisar e achamos um grampeador que é eletrônico, você coloca o papel e ele grampeia. Eu sugeri, e eles compraram pra todo mundo. Eles super estavam dispostos mesmo a fazer acontecer a coisa lá.”

E ela super estava disposta a fazer acontecer coisas fora da empresa. Porque Ingrid também se jogou no amor. Conheceu o Bruno Nascimento, com quem é casada hoje, numa sala de bate-papo online. “E eu nunca acreditei nessa história do relacionamento que acontece pela internet, sabe?”. Despretensiosa, Ingrid não esperava que a conversa poderia evoluir muito, já que ele era de São Paulo, e ela morava a alguns quilômetros da capital. Mas continuou o papo.

Um mês depois de começarem a conversar, só por uma tela do computador, Ingrid estava no Porções, o bar dos seus pais em Sorocaba, quando recebeu uma ligação. Era ele. “‘Estou aqui’. ‘Estou aqui onde?’ ‘Estou aqui na frente do bar!’. Eu falei ‘mas como assim?’”. Sim, ele estava lá, na frente. “Ele foi lá no serviço do pai dele, pegou o carro emprestado e veio para Sorocaba. Só com o nome do bar, que é Porções. Nem o endereço ele tinha. Chegou na cidade e foi perguntando onde era o Porções. E apareceu lá!”.

Ingrid não esperava viver uma cena de filme de romance adolescente naquele dia. Bruno também não, mas a cena dele foi mais parecida com a de uma comédia romântica. Porque, ao planejar fazer uma surpresa para a menina que estava conhecendo pela internet e se apaixonando, não contou que também encontraria a família dela. Na primeira vez que veria Ingrid pessoalmente. “Quando ele entrou, meu irmão, meu primo, que zuou pra caramba, e o meu avô estavam sentados na mesa! Tipo, os piores, né?! O irmão, o primo, aquele mais da zueira.”

Depois de conhecer a família de Ingrid logo no primeiro encontro, Bruno se despediu. Porque toda a aventura da noite era um risco maior do que parecia: no dia seguinte, Bruno teria de estar em São Paulo, onde passaria o dia fazendo vestibular para o curso de Matemática na USP. Antes de ir embora, ele e Ingrid conversaram por mais uma hora. “Aí a gente se beijou. Daí, ele falou assim, ‘Ah! Semana que vem eu volto.’” Não foi só da boca pra fora. “Não faltou mais nenhuma. Ele veio em todas as semanas.”

A partir daí, o relacionamento deslanchou e as peças foram se encaixando rapidamente na vida do casal. Bruno passou no vestibular e começou a faculdade na USP, em São Paulo. Conciliava os estudos com um emprego de motorista de caminhão, entregando remédios. Mas ficou difícil manter a rotina, então pediu demissão. Com o que recebeu de rescisão mais o dinheiro que Ingrid tinha guardado vendendo bijuterias, eles compraram uma casa. Fazia três meses que namoravam. “Minha família tinha uma casa que era herança de bisavô que fica pra quinhentos milhões de herdeiros. Decidiram vender. ‘Se for pra família, a gente faz um preço bom’. Compramos uma casa juntos. Com três meses de namoro!”. Se jogar está na personalidade de Ingrid.

 

Mais do que influenciar o jeito como ela vive, a família também colocou um sonho no coração de Ingrid. “Os meus pais, desde que eu e meu irmão éramos pequenos, tentaram adotar. Porque a ideia da minha mãe era ter quatro filhos. Mas aí com meu diagnóstico… Acabou né? Desistiram. Aí começaram a tentar adoção, mas nunca dava certo. Só que a vontadinha ficou em mim, sabe?”.

Ingrid contou para o marido o desejo de adotar e ele topou. “Mas a gente fica naquela do dia a dia e acaba não indo atrás, né?” Até que Ingrid, que gosta de se jogar, se jogou. No fim de 2018, resolveram entrar na fila de adoção do jeito tradicional. “E o processo de adoção é demorado sim”. Ingrid e Bruno levaram quase dois meses só para reunir os documentos exigidos. “E aí, entre a entrevista com o psicólogo e a entrevista final com a assistente social, foram oito meses”, ela diz.

Não é que Ingrid precisasse adotar porque não pode engravidar. A adoção era realmente um sonho. “Eu quero dois filhos. Aí, o que eu fiz? Eu negociei com Deus. Falei ‘Ó, é assim. Um, eu quero adotar. Se você não quiser que eu engravide, me manda duas crianças’. E foi batata.”

O casal ficou na fila de espera por dez meses. Enquanto esperavam, decidiram que iam tentar a sorte em engravidar. E criaram uma situação propícia para isso: compraram uma viagem de navio que cruzava o oceano. “A gente ia pra Itália, ficar uma semana lá, e voltar de navio.” Compraram as passagens e fecharam tudo em julho, para embarcar em novembro. No dia onze de agosto, Ingrid tinha acabado de chegar ao trabalho quando o telefone começou a tocar. “Atendi. Era do fórum. ‘Olha, a gente está com um casal de crianças aqui com o seu perfil. Você topa vir conhecer?’ Eu nem sabia me posicionar, só liguei pro meu marido e falei ‘Viu, vamos pro fórum. Vem me buscar.’”

Lá, eles viram fotos e ouviram as histórias de uma menina de dois anos e de um menino de seis. Voltaram ao fórum dias depois para conhecer as crianças pessoalmente. Ingrid estava aflita com o encontro. “Daí chegaram os dois, de boa, super tranquilos. Ficamos brincando com eles.” A assistente social e a psicóloga deixaram os quatro sozinhos. Tiveram um tempo para se conhecer e ver para onde evoluiria o primeiro contato. Uma hora depois, a psicóloga voltou. “A gente já estava num grau de intimidade… Eles já estavam desenhando um reloginho no braço da gente.”

“Ela grudou no meu marido, e ele, em mim.” Enquanto conversavam sobre a última hora com as crianças, o menino vinha mostrar para Ingrid os desenhos que estava fazendo. “Daqui a pouco ele veio de novo. ‘Olha, essa é a mamãe. Eu fiz bolinha na mão e no pé dela porque ela não anda’”. A psicóloga, surpresa, olhou para ele, olhou para Ingrid, e disse: “Bom, se existia alguma dúvida até esse momento, acabou né?”. Ingrid estava tão emocionada e imersa no momento, que não mal consegue descrever o que sentiu. “Eu acho que a gente fica tão anestesiado, que não dá pra descrever. Mas, assim, é uma conexão que eu acho que é o que a mãe sente quando vê o bebê que sai da barriga. Porque é um amor que vem na mesma hora, parece que você já conhece a criança.”

E aconteceu. Ingrid se descobriu mãe. “É o maior desafio que a gente tem na vida sem sombra de dúvidas! Não acaba nunca. A hora que você acha que você está sabendo lidar, muda tudo! Mas assim, pra eles foi mega natural”. Mais uma vez, um passo importante na vida de Ingrid aconteceu naturalmente. Como foi quando comprou uma casa com o então namorado, ou quando marcou a data do casamento. “É meio inexplicável até como as coisas aconteceram tão naturalmente assim, sabe?”.

Em 2022, Ingrid tem uma rotina agitada e a agenda lotada. Ela divide seu tempo com o emprego, o marido, o filho e a filha pequenos. Mas, não para por aí. Também é coordenadora de uma ONG de apoio a mulheres em Sorocaba, chamada Café com Mulheres. “Toda semana a gente desenvolve um encontro, e esse tempo é pra mulher ser só mulher, sabe? Desvestir os papéis sociais e ter um tempo pra ela, pra trocar figurinha, pra se conhecer. E aí eles vão sentindo a necessidade e chamando as palestrantes de acordo com o que precisa.”

Ah, pra fechar a agenda concorrida, no dia seguinte à nossa conversa, um sábado, Ingrid foi vender suas bijuterias em uma feira de artesanato na cidade. “Minha vida é assim. Tudo junto e misturado.”

 

Madalena em movimento

Aos 40 anos, Madalena Filgueira é advogada, concursada, ativista, proprietária de duas lojas de roupa e mãe do Théo.

Madalena Filgueira teve uma infância típica de criança do interior. Enquanto crescia com os quatro irmãos em Milagres, cidade no Ceará que hoje tem pouco mais de 27 mil habitantes, passava o dia jogando bola, andando de bicicleta e correndo pela vizinhança. “No interior, a gente é criado muito solto na rua e meus pais nunca privaram a gente de nada.” Até que um dia, ao contrário das outras pessoas, Madalena desaprendeu a andar de bicicleta. “É estranho, porque a gente aprende a andar de bicicleta, aquela coisa de que a gente vai tendo o equilíbrio e pedalando, né?”

No caso dela, o roteiro se inverteu. Ela percebeu que estava perdendo o equilíbrio e a força para pedalar. “Comecei a andar de bicicleta com menos frequência. Um exemplo, aqui tem uma rua que eu conseguia descer, porque era íngreme, mas não conseguia subir. Eu tinha que carregar a bicicleta e ir andando”. Isso começou a acontecer porque, aos seis anos, Madalena descobriu que tinha atrofia muscular espinhal (AME). “Foi descoberto primeiro no meu irmão, porque o caso dele é um pouco mais grave do que o meu.”

 

 

Ela foi diagnosticada com AME tipo três, em que a pessoa chega a andar sozinha, mas tende a perder essa habilidade com o tempo4. “Aí, quando fechou o diagnóstico de que ele tinha AME, o médico falou pra minha mãe começar a observar os outros filhos.” Foi o que a mãe fez. De fato, dois anos depois, reparou que Madalena estava caindo mais do que as outras crianças. Desconfiada, levou a filha ao médico, e recebeu o mesmo diagnóstico do irmão caçula. “Aí, vem a progressão da doença. Foi aos poucos. Na minha infância, eu corria e pulava. Foi na adolescência que começou a aquecer mais.”

Então, a vida de Madalena mudou em câmera lenta. “Eu andei de bicicleta até os meus dezoito anos. Andei de moto até vinte e oito anos.” Mas, para falar a verdade, ela não confabulava muito sobre as próximas cenas enquanto via seu corpo mudar. Até porque, pela progressão ter sido mais lenta, a vida de Madalena foi acontecendo numa rota mais ou menos esperada. “Eu sabia que uma hora ou outra eu ia ficar na cadeira de rodas, porque eu já vinha acompanhando a evolução do meu irmão. E meus pais sempre disseram que a gente teria que estudar, que a gente teria que fazer uma faculdade, que a gente teria que trabalhar e seguir a vida normalmente. Então, vivi minha infância e minha adolescência naturalmente… E eu nunca parei muito pra pensar como seria o depois.”

Quer dizer, ela pensava no futuro quando tinha de pensar, como em fins de capítulos. Uma dessas vezes, por exemplo, foi quando se formou no ensino médio e teve de decidir qual carreira seguir. “Eu sabia que Medicina, Fisioterapia e Enfermagem seriam profissões mais difíceis pra mim, né?”. Ela resolveu seguir os passos do pai e do irmão mais velho, ambos advogados. “O fato de já ter o pai nessa profissão, sempre me despertou a vontade de fazer Direito.” Também se baseou em questões práticas na hora de bater o martelo sobre a escolha. “Eu poderia fazer um concurso, poderia advogar. A deficiência não ia interferir muito. Então, eu pensei: é Direito ou Psicologia.” Foi com a primeira e entrou no curso de Direito na Universidade Regional do Cariri.

Ela ainda estava na faculdade quando, em 2008, a vida deu uma guinada. Madalena prestou um concurso público para a prefeitura de Milagres e passou. Ocupou um cargo de agente administrativa e teve que conciliar o trabalho com os estudos. “A faculdade era à noite no município de Crato, região do Cariri. Aí, eu trabalhava pela manhã e ia pra faculdade à noite. Era bem corrido.” Sem contar a vida universitária fora das salas de aula. No fim, tirando o emprego na prefeitura, era o dia a dia de uma jovem adulta encarando a montanha-russa da vida real.

A rotina agitada durou os cinco anos de graduação e não deu muitas brechas para novidades. O relógio só pareceu voltar a marcar vinte e quatro horas por dia quando recebeu o diploma e o certificado de advogada. “E a maioria das amigas já estava se casando, elas já tinham sua vida, foram se afastando. Aí, eu fui ficando mais caseira, porque, até então, eu não parava em casa.”

O pontapé que a levou ao ativismo foi conhecer uma pessoa com AME tipo 1, forma mais severa da doença. “Pra mim foi um choque muito grande.” Conheceu um jovem que precisava da utilização de aparelhos para respirar e se alimentar, o que não havia sido sua experiência de vida até então. Porque o corpo de Madalena foi mudando quase de década em década, um roteiro bem diferente dos que estava vendo de perto pela primeira vez. Foi depois dos trinta que as pernas foram se cansando de andar, por exemplo. Caminhar ficou mais difícil do que ela estava acostumada. Tanto que ela passou a andar se apoiando na parede, em móveis da casa, ou onde pudesse. "E tinha que ter muito cuidado, porque de uma hora pra outra perdia o equilíbrio e caia, como se estivesse desaprendendo a andar!”.

 

 

Daí, ela sentiu que precisava espalhar conhecimento. E que compartilhar a sua própria história de vida poderia fazer bem a ela e a outras pessoas. “Foi muito bom pra mim conhecer outras pessoas, outras realidades, e contribuir com minha experiência de viver com AME, de transmitir para muitas mães que têm filhos pequenos ainda, ou adolescentes, que eu tive uma vida ativa, que eu estudei, que eu me formei… Depois que eu me casei, que eu tive meu filho.”

Em 2015, durante uma campanha de divulgação sobre o que é AME, uma mãe a apresentou ao fotógrafo do evento. A química rolou e eles trocaram contatos. “É aquela coisa, quando eu não estava procurando… Eu estava indo totalmente engajada!”, ela ri. Madalena e José Roberto começaram a conversar por telefone. Ele era do interior de Pernambuco, o que mantinha os pés dela no chão. A relação tomou fôlego e engatou muito mais rápido do que ela poderia imaginar. Em duas semanas, José viajou para a casa de Madalena. Pouco tempo depois, assumiram o namoro. “Deu oito meses, a gente já se casou! Foi tudo muito rápido”, ela ri.

Como moravam em estados diferentes, um deles teve de ceder à mudança. Madalena deixou claro que sair do Ceará não estava nos seus planos. O marido não insistiu e, sem muita delonga, decidiu se mudar para Milagres. Na bagagem, levou junto os negócios da família: uma confecção. Decidiu abrir uma loja de roupas na cidade de Madalena. “E graças a Deus está dando tudo certo. A loja está crescendo.” Em 2022, já são duas, sendo uma só de produtos infantis.

Quando viu que o pilar financeiro estava se estruturando de forma consistente, Madalena quis subir mais um degrau. “Eu sempre quis constituir uma família, ter um filho e tal.” Dessa vez, diferente da paixão que a levou ao casamento em pouco tempo, Madalena esperou. Pensou em todos os detalhes e preparou sua vida para gerar um filho. “Primeiro eu quis passar um tempo casada. A gente demorou cinco anos para engravidar”.

 

O primeiro passo já estava dado. “A gente quis ver se realmente as lojas iam dar certo, né? Então a gente primeiro foi fazer com que desse certo a loja de confecções.” O segundo era responder a algumas dúvidas. Ela queria entender se poderia engravidar e se seria uma gravidez de risco. “Como eu tenho uma doença genética, hereditária, primeiro eu queria ver a possibilidade de eu ter um filho que não tivesse atrofia muscular espinhal.”

Madalena encarou seus medos e colocou as possibilidades na balança. Eram muitas dúvidas. “Até eu completar trinta anos, eu não conhecia ninguém que tivesse filho. E sempre tinha aquele medo, aquele receio, de como seria a gravidez, se seria tranquilo, se não seria um risco de vida para mim, como seria o filho. A gente não tinha informações de outros médicos especialistas para dizer que vai dar tudo certo”, ela conta.

De novo, foi no ativismo que ela se encontrou. “A gente fez um grupo só de meninas com AME, e já tinham algumas com filhos. A gente falava sobre quem era a médica, que acompanhava, como foi…”. Os olhos dela brilhavam ao ver o sonho se aproximar da realidade. “Antes, eu nem falava muito que seria um sonho pra mim ter um filho, com medo da decepção de não poder ter. Quando conheci algumas meninas que tinham filhos, aí me deu aquela esperança, aquela vontade, né? Mais concreta de que vai dar certo”. Então, quando ela se reconheceu em outras mulheres, agarrou o sonho com força e determinação.

Ela e o marido começaram uma jornada de consultas médicas e exames. Uma das paradas foi em um congresso em Fortaleza, para ouvir a opinião de um especialista sobre a gestação. “O profissional orientou tudo direitinho. Disse que eu poderia engravidar, que a gravidez seria segura. Só não poderia ter filho em parto normal, teria que ser necessariamente cesárea”, ela diz.

Com a resposta em mãos, Madalena não perdeu mais tempo. “Aí eu fui ao ginecologista que já me acompanhava e fiz os exames pra saber se já estava tudo bem. Parei de tomar o anticoncepcional e a gente já foi tentando.” Em seis meses, ela engravidou de Théo. “Graças a Deus, a gestação ocorreu bem. Foi tranquila, graças a Deus, tudo em paz e deu tudo certo.”

Foi durante a gravidez que Madalena passou a usar de vez a cadeira de rodas. “Para não correr o risco de cair estando grávida, né?”. A gestação foi tranquila e quando Theo completou três meses a pandemia começou, o que pausou a vida ativa de Madalena, incluindo parte do tratamento de AME. “Parou a fisioterapia, parou o pilates, parou tudo. Aí a progressão da minha doença acelerou. Devido tanto à gravidez quanto à pandemia. Hoje eu sou totalmente dependente da cadeira.” Mas isso não é uma reclamação e ela não fala com tristeza. “Porque eu pensava que aconteceria mais cedo. Eu dou graças a Deus, por eu ter tido uma vida tão ativa e a progressão da doença ter sido tão lenta. Porque foi depois dos trinta, e eu descobri que tinha AME com seis anos.”

 

Aos 40, Madalena continua trabalhando na prefeitura, administra duas lojas de roupas e acabou deixando a advocacia um pouco de lado. Sem contar seu lado ativista e seu lado mãe. “Depois que ele nasceu, minha vida virou, assim, totalmente, no sentido de não ter mais tempo pra nada”, ela brinca. Madalena, inclusive, só pôde dar essa entrevista porque o filho havia voltado às aulas, e tinha uma hora livre contada em uma manhã de junho.

Da mesma forma que um dia uma mãe serviu de exemplo para ela, hoje Madalena quer que outras meninas e mulheres possam se inspirar nela. “Assim, eu sirvo muito de exemplo para muitas mães que têm filhos criança ou adolescente com AME e que têm aquele receio de como seria a vida do filho.”

 

Hoje, Théo está com dois anos e meio. Ele não olha com estranheza o jeito que a mãe e o tio se locomovem, já que vê uma cadeira de rodas em casa desde que nasceu. Por isso, ainda não solta perguntas sobre os movimentos dela. “Eu acredito que mais pra frente vá despertar essa curiosidade nele pra perguntar porque eu estou na cadeira.”

Mas, às vezes, a mãe percebe que ele a observa. “Por exemplo, quando eu vou pro banheiro, meu marido precisa me colocar em pé. Ele me vê em pé e fica olhando… Assim, com curiosidade pelo fato de eu estar em pé.” Os olhares atentos de Théo são de curiosidade, mas também de cuidado. “Quando, tipo, é para sair da cama para ir para a cadeira, ele já fica mexendo na cadeira, querendo ajeitar, querendo me puxar, pra tipo, ajudar o pai dele a me colocar na cadeira, está entendendo?”.

Na semana anterior à nossa conversa, Théo disse uma frase que deixou os pais sem reação. “Ele disse: ‘Ah, quando eu crescer eu vou ajudar a mamãe! Eu vou ajudar a colocar a mamãe na cadeira!’”.

 

Em caso de dúvidas sobre algum termo utilizado nesta matéria, acesse o glossário.

 

Referências bibliográficas:

1.  VERHAART, I. C. et al.Journal of Neurology, v.264, n. 7, p. 1465–1473,2017.

2.  Prior TW, Leach ME, Finanger E. Spinal Muscular Atrophy. 2000 Feb 24 [updated 2020 Dec 3]. In: Adam MP, Ardinger HH, Pagon RA, Wallace SE, Bean LJH, Mirzaa G, Amemiya A, editors. GeneReviews® [Internet]. Seattle (WA): University of Washington, Seattle; 1993–2021.

3.  Wang CH, et al. J Child Neurol. 2007;22:1027-1049.

4.  Pera et al. PLoS One. 2020; 15(3): e0230677.

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